Expoente da literatura africana, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ficou famosa não só pela publicação de seus romances e contos, mas também pelos seus pequenos livros de não-ficção e palestras no TED. Uma delas, chamada “O perigo da história única”, me marcou profundamente e passou a guiar muitas de minhas escolhas literárias.
Na palestra, ela fala sobre como precisamos ampliar nossos horizontes e ler histórias para além das que costumam ser mais divulgadas. Historicamente, é inegável que os autores homens brancos do eixo Europa/Estados Unidos têm muito mais espaço nas casas de publicação. Quando comecei a ler mais mulheres e mais países, me deparei com outras formas de escrita e cultura que me trouxeram muito mais repertório — e daí por diante, eu nunca mais parei.
A literatura africana é tão vasta quanto seu continente, que traz países muito diferentes entre si e com diversos panoramas e histórias. Eu tenho certeza absoluta de que não li (e nunca lerei) o suficiente para fazer uma curadoria maravilhosa, mas trouxe aqui meus pitacos. No post, você confere 9 indicações de livros escritos por autores africanos.
Tentei selecionar escritores de países diferentes e talvez você estranhe a ausência da Chimamanda na lista, já que abri o texto falando dela, mas quis dar oportunidade a outras vozes, já que escrevi outro texto por aqui recomendando todas as suas obras. Aproveite!
1. Terra Sonâmbula — Mia Couto (Moçambique)
Entre os nomes mais expoentes da literatura africana está Mia Couto, escritor moçambicano nascido em 1955 que é também jornalista, biólogo e foi um dos dois únicos autores de língua portuguesa a ganhar o prêmio Neustadt (considerado a versão americana do prêmio Nobel).
Além de seus livros de contos e crônicas, Couto tem mais de 15 romances publicados em 22 países e Terra Sonâmbula, o primeiro deles, é um dos mais celebrados. Publicado em 1992, o título é considerado um dos melhores romances do século 20.
A obra traz uma história tão profunda quanto melancólica, guiada por um velho e um menino que vivem as dores, os traumas e a solidão da guerra civil vivenciada no período pós-independência de Moçambique.
Abrigados em um ônibus incendiado, eles trocam histórias enquanto acompanham os relatos narrados no diário que encontraram junto a um corpo na beira da estrada e é ao longo desse entrelaçamento de vivências que a narrativa se constrói. Terra sonâmbula é um livro sobre a arte de contar histórias — e a vida, no fundo, também.
Ser leitora de língua portuguesa é um presente quando pensamos que podemos ler Mia Couto no original, já que, além de entregar uma prosa poética e fluida, o autor é famoso pelos seus neologismos: se prepare para se deparar com palavras completamente novas e que de repente passam a fazer todo o sentido do mundo.
2. Fique comigo — Ayòbámi Adébáyò (Nigéria)
Esse relato é extremamente pessoal porque eu li Fique comigo há cerca de 3 anos e nunca me recuperei. A história é tão forte, dolorida, profunda e cheia de elementos sociais que é praticamente impossível não se envolver.
Finalista do Baileys Women ‘s Prize for Fiction, o romance nos apresenta o casal Yejide e Akin. Ao se conhecerem e se apaixonarem na faculdade, começaram a construir uma história de amor que, por parte de Yejide, tinha uma condição fundamental: contrariando as expectativas e tradições regionais, eles deveriam manter um relacionamento monogâmico.
Era esperado de Akin que ele tivesse várias esposas, mas ele prometeu a Yejide que ela permaneceria sendo a única — o que começou a se tornar uma grande questão para a família quando o tempo passou e ela não engravidou.
Enquanto a “culpa” da infertilidade do casal recorria inteiramente sobre ela, todos insistiam para que Akin arranjasse uma segunda mulher e o casamento entre eles começa a ficar cada vez mais desgastado.
Quando ela, em desespero, recorre a seus próprios meios para engravidar (e consegue), descobre que sua jornada de tragédias apenas começou: com a chegada da criança ela precisará encarar o maior fantasma de sua vida, a anemia falciforme. Hereditária, essa doença é transmitida por meio de genes recessivos, ataca o sangue, não tem cura e é bastante comum na Nigéria.
Publicado em 2017, o livro é o romance de estreia da escritora que, visivelmente, começou a construir uma grande marca na literatura.
3. Sem gentileza — Futhi Ntshingila (África do Sul)
Confesso: sou uma leitora chegada em calhamaços e sempre desconfio um pouco de livros muito curtos. Será que eles têm mesmo muito a entregar? E em Sem gentileza, Futhi Ntshingila entrega — eu garanto.
Sul-africana, a escritora apresenta uma história que se passa nos guetos do país, em meio ao Apartheid. Zola e Mvelo são mãe e filha que vivem as agruras de uma sociedade machista e patriarcal enquanto lutam para sobreviver com dignidade.
Ao seu redor, o vírus do HIV se alastra pelo país e surgem teorias absurdas de que a cura para a doença é transar com uma virgem, o que faz com que meninas na pré-adolescência e na adolescência se tornem as principais vítimas de um sistema que as engole a cada dia.
Inseridas em uma linhagem de dores e tragédias, seria incoerente exaltar a força das personagens: elas não têm outra opção. Pedindo, desde já, perdão pelo trocadilho, digo que essa história nos é apresentada do jeito que deveria ser, ou seja, sem gentileza alguma. E é muito importante conhecê-la.
4. Niketche — Paulina Chiziane (Moçambique)
Paulina Chiziane foi a vencedora do prêmio Camões em 2021 e a Companhia das Letras recém publicou uma nova edição de seu livro Niketche, outra grande obra da literatura africana no século 20.
A obra, que tem como subtítulo “uma história de poligamia”, narra a história de Rami, uma esposa que acredita ter uma relação monogâmica com o marido, com quem é casada há 20 anos. Depois de descobrir a primeira amante, ela entra em uma grande trilha de dominós: basta empurrar um para que o próximo caia. Cada uma indica a próxima e ela resolve conhecer uma a uma (e também todos os filhos que seu marido fez pelo país afora).
A genialidade de Chiziane está no encaminhamento da história e nos meios que Rami vai usar para transformar a situação. Eu bati palmas mentalmente enquanto lia o desenrolar do livro.
5. O pomar das almas perdidas — Nadifa Mohamed (Somália)
Você já tinha ouvido falar da ditadura militar da Somália? Eu não tinha. Pouco estudamos da história da África na escola para além do tenebroso tráfico de escravizados. No livro, conhecemos essa história a partir das vivências de três personagens cujas vidas se cruzam de maneiras bastante doloridas.
Deqo é uma menina de 9 anos que nasceu em um campo de refugiados. Junto com as outras meninas do local, está animada para fazer uma apresentação de dança no evento de comemoração ao governo atual: depois disso ganhará um sonhado par de sapatos.
Tudo dá errado, no entanto, e é ali que ela conhece Kawsar, uma viúva bondosa que parece querer ajudá-la a fugir das perseguições de Filsan, uma jovem soldado responsável por ajudar a repelir qualquer sinal de rebelião.
Seguimos acompanhando a história dessas três mulheres e como a vida delas segue no individual depois desse encontro — e o desafio é entender que, no fundo, todas são vítimas do mesmo sistema, mesmo que Filsan pareça uma grande vilã por precisar lutar para sua manutenção.
Livro que já entrega sua melancolia desde o título, O pomar das almas perdidas é um romance de personagem que consegue trazer um panorama intenso da situação do país ao mostrar trajetórias individuais muito intensas e que, infelizmente, representam diretamente o todo. Certamente inúmeras outras Deqos, Kawsars e Filsans vivenciaram e vivenciam essas dores.
6. O vendedor de passados — José Eduardo Agualusa (Angola)
É bastante comum (e sórdido) que governos ditatoriais tentem “transformar o passado” por meio da modificação de arquivos históricos para que a história pareça mais bonita e coerente com o que eles querem pregar. Por conta disso, o tema também não é inédito na literatura e podemos nos deparar com eles em obras bastante diferentes.
Em 1984, George Orwell nos mergulha em uma distopia cujo governo age dessa maneira, manipulando não só as vidas dos indivíduos mas também seus pensamentos e toda a história vivida até então. Em Trilha sonora para o fim dos tempos acompanhamos um artista cujo trabalho para o governo é alterar pinturas e fotografias para que elas ocultem pessoas indesejadas e mostrem os governantes apenas de maneiras positivas.
Essa introdução foi só para dizer que também é a partir dessa ideia que Agualusa trabalha seu livro O vendedor de passados. Após a tão esperada conquista da independência, a burguesia angolana se anima com o futuro brilhante que terá pela frente — mas o que fazer com o passado para que ele seja mais condizente com essa nova realidade?
Como tudo no capitalismo acaba se transformando em uma grande oportunidade de mercado, é disso que o protagonista do livro vai se aproveitar para começar a vender a seus clientes uma nova árvore genealógica.
As novas genealogias, é claro, precisam parecer mais dignas e luxuosas que as anteriores, revelando personalidades distintas e célebres ancestrais. Mas e quando o passado e o presente começam a se cruzar e a realidade se confunde com a invenção?
Vencedor do prêmio IMPAC de 2017, Agualusa nos conduz a uma história sobre o peso da verdade e o poder da criatividade, essa habilidade tão humana.
7. Preço de noiva — Buchi Emecheta (Nigéria)
Além de seus livros e palestras inesquecíveis, outro grande presente que Chimamanda nos trouxe foi Buchi Emecheta. Isso porque, por considerá-la sua grande inspiração, Chima (trabalho na intimidade) indicou um livro da autora quando foi curadora de um pacotinho do clube de assinaturas TAG e foi assim que Buchi foi publicada no Brasil pela primeira vez.
Os ventos sopraram a favor e ela fez tanto sucesso que a editora Dublinense resolveu começar a publicar toda a sua obra e sinceramente eu poderia estar indicando qualquer dos outros por aqui (devorei todos os que já foram publicados), mas optei por Preço de noiva que foi o último a ser trazido até agora.
No livro, acompanhamos a história de Aku-nna, que sofre um grande revés quando a morte de seu pai implica não apenas na dor do luto mas também na mudança de sua família da capital do país (Lagos) para o povoado rural em que mora o irmão de seu pai, a quem sua mãe será repassada como esposa.
Ganhando de brinde uma nova família com irmãos que competem com ela e os olhares apurados de toda a sociedade local, Aku-nna ainda precisa lidar com a busca de todos pelo melhor casamento possível para ela enquanto se apaixona por um homem que não é considerado digno o suficiente para ter o direito de pagar o seu preço de noiva.
Os livros de Buchi são um mergulho completo na cultura e nas bases e tradições da sociedade nigeriana e cada um deles parece uma aula — com uma história extremamente envolvente por cima.
8. O caminho de casa — Yaa Gyazi (Gana)
Se você quer entender o que é racismo estrutural sem ler um livro de não ficção sobre o assunto, é a história de Yaa que você deve pegar. Em seu romance de estreia, a autora faz um trabalho magistral ao contar a trajetória de pessoas negras e a construção do racismo desde o momento em que povos começam a ser invadidos e carregados da África no tráfico negreiro.
Para contar tanto a história de quem é levado quanto de quem fica, ela divide tudo em duas linhas narrativas: no início, acompanhamos a história de duas irmãs que são separadas. Enquanto uma permanece no continente e tem um casamento forçado, a outra é levada no porão de um navio como escravizada.
Os capítulos seguem sendo divididos: cada um deles é sobre o próximo descendente de uma, da outra, e assim por diante enquanto a história chega quase aos dias de hoje e entendemos numa linha do tempo muito clara como são profundas as raízes do preconceito e da desigualdade, por quantas etapas o processo vem se solidificando e mudando de faceta e tudo continua péssimo — enquanto os brancos seguem contando suas versões da história e fazendo de conta que tudo terminou com as abolições.
9. A mulher de pés descalços — Scholastique Mukasonga (Ruanda)
Você já ouviu falar do genocídio de Ruanda? Essa guerra interna aconteceu entre as duas etnias originárias do próprio país, os Hutus e os Tutsi — e bastante impulsionada, é claro, pelos colonizadores europeus. Um povo se auto-atacando é algo extremamente triste e deixa marcas muito profundas na história.
Aqui estou recomendando A mulher de pés descalços mas, na verdade, esse livro pertence a uma trilogia de obras que se complementam perfeitamente e não precisam seguir uma ordem de leitura. Scholastique Mukasonga vivenciou o genocídio e foi a única a sobreviver em sua família. Ela precisava contar essa história, e assim o fez, de diferentes maneiras.
Enquanto Nossa Senhora do Nilo é uma obra ficcional e Baratas é de não-ficção, A mulher de pés descalços vem no meio do caminho. Funciona como um livro de auto-ficção, no qual ela cria uma história poética levando em consideração muito da realidade.
Ela dedica o livro à sua mãe e diz que seu objetivo é fornecer, ao menos, uma mortalha de papel a todas as mulheres que morreram em meio ao caos e sequer puderam ser veladas e enterradas. Sua delicadeza e sua força estão a todo o vapor na narrativa, que eu recomendo fortemente.
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Atualizado em 2024-11-21 / Links afiliados (Affiliate links) / Imagens de Amazon Product Advertising API